Introdução
A ficção, muito mais do que uma simples forma de
entretenimento, é muitas vezes uma ferramenta de denúncia e crítica à realidade
social. Através das histórias ambientadas em “futuros distantes”, muitos
autores buscam fazer analogias com as sociedades vigentes e suas práticas, as
quais consideram inadequadas.
A Graphic Novel V de Vingança
foi escrita entre 1981 e 1988, pelo escritor inglês Alan Moore juntamente com o
ilustrador David Lloyd. Concebida no contexto de fim da guerra fria e ascensão
de Margaret Thatcher ao cargo de primeira ministra na Inglaterra, onde ela adotou
uma série de medidas muito contestáveis.
Moore tece nas entrelinhas de sua
Graphic Novel inúmeras criticas à realidade da época. Mesmo tendo ambientado V de Vingança em futuro não tão
longínquo, é possível estabelecer paralelos entre o governo fictício e o
governo contemporâneo à criação da história. Alan Moore afirma: “Decidi que, se queria
escrever sobre este triste presente a melhor maneira de fazê-lo era na forma de
uma história ambientada no futuro.” (Moore Apud Vylenz. Winkler. 2005)
Em uma sociedade que em muito se assemelha a nossa,
dominada por um governo autoritário, onde a privacidade e a liberdade pessoal
foram extintas em prol a um suposto ideal de proteção da população, surge V, um
revolucionário que tenta através de vários atos terroristas desestabilizar o
governo e implantar na população um ideal de libertação de essência anarquista.
“[Em V de Vingança]
A
anarquia é a única salvação do mundo, e um homem, um único homem pode mudar as
coisas, por pior que elas estejam. Claro, agitando a massa para agir com ele.” (MOURA. 2011. P.82)
Alan Moore e seu impacto no meio das Histórias em
Quadrinhos
Até o início da década de 1980, as
histórias em quadrinhos sempre tiveram seu foco voltado ao entretenimento do
público infantil, envolvendo tramas mais amenas, de fácil assimilação e sem a
presença de tanta violência. Isso se intensificou a partir da década de 50
devido à grande censura recebida após o lançamento do livro “Seduction of the innoncence” do
psiquiatra Frederic Wertham, no qual ele afirmava que as histórias em
quadrinhos eram péssimas influências para as crianças, estimulando a
delinqüência infantil e até o homossexualismo. Surgiu então por parte das
editoras o chamado “Comics Code Authority”, uma auto-regulamentação criada por medo de represálias
do governo e da população. Esse código perdurou por cerca de 20 anos, até ser
abandonado pelas editoras. (JARCEM, 2007)
Mas uma grande mudança começava a acontecer
nas histórias em quadrinhos na década de 80, devido ao surgimento de
roteiristas como Alan Moore, Frank Miller e Neil Gaiman. As histórias em
quadrinho começaram a ganhar uma “densidade” maior, começou-se a abordar
diversos temas considerados estigmas para a época, como o preconceito,
homossexualismo, drogas e entre outros. As obras não abandonaram a ficção, mas
se tornaram mais críveis estabelecendo paralelos com a realidade. Acerca disso,
Alan Moore comenta no documentário “The
Mindscape of Alan Moore”:
Em
meu trabalho eu me movo na ficção, não nas mentiras. [...] Com a ficção, a arte
e a escrita é importante que, ainda que você esteja trabalhando em áreas da
fantasia completamente diferentes, haja ali uma ressonância emocional. É
importante que uma história soe real a nível humano, mesmo que nunca tenha
acontecido. (Moore Apud Vylenz. Winkler. 2005)
Alan Moore, que escrevia roteiros
para revistas de super-heróis, distorce completamente o ideal de um herói com
um conceito de moral inquestionável que segue todas as leis e luta contra
crime, isso veio a se tornar uma das marcas do escritor e pode ser vista em
outras de suas histórias, como por exemplo, em “Watchmen”. Essa distorção do
herói também é característica notável de V
de Vingança, nela Moore apresenta V, o protagonista da história, como um
terrorista mascarado que em momento algum revela sua identidade, sexo ou raça,
que é uma vitima e produto desse governo, que vê no Anarquismo a única saída
para a libertação da população.
V
de Vingança é uma obra extremamente crítica que tem
como principal objetivo levar o leitor a tecer uma série de reflexões durante a
leitura. Isso fica evidenciado nos discursos proferidos por “V” ao longo da
trama.
O Anarquismo em V
de Vingança
[...]
o nosso fim é chegar àquele estado de perfeição ideal no qual as nações não terão
mais necessidade de estar sob a tutela de um governo ou de outra nação; e a
ausência de governo é a ANARQUIA, A MAIS ELEVADA EXPRESSÃO DA ORDEM. (RECLUS,
2002, p. 12)
A trama de V de vingança como o título sugere, trata a respeito da vingança de
seu protagonista “V”, que é um sobrevivente de um “campo de readaptação”, local
onde na história eram presos aqueles que eram vistos como marginais pela ótica
do governo fascistas, as minorias raciais, homossexuais e intelectuais
contrários a esse governo. Inclusive na concepção original do personagem, que
foi rejeitada pela revista Warrior
onde a história seria publicada, Alan Moore propôs que V seria um transexual e
por esse motivo teria sido enviado a esse campo.
Mas a sua vingança não é
direcionada a um vilão e sim ao sistema de governo, ele age sabotando o governo
matando seus líderes, destruindo seus símbolos e monumentos e tentando
despertar na população um espírito revolucionário.
Na visão do personagem é apenas
após a destruição completa do governo e de seus líderes que uma sociedade mais
justa poderá “florescer” baseada nos ideais anarquistas. É notório durante toda
a história a influência explícita das idéias do autor anarquista russo Michail
Bakunin sobre a construção do personagem V feita por Moore e Lloyd.
Bakunin assim como V defendia que
era somente através de uma revolução violenta que a sociedade conseguiria se
ver livre da corrupção e que a partir da destruição é que se podia recomeçar.
“Confiemos
no eterno espírito que destrói e aniquila apenas porque é a inexplorada e
eternamente criativa origem de toda a vida. A ânsia de destruir é também uma
ânsia criativa” (BAKUNIN apud WOODCOCK 1975: p. 132).
A máscara e as
manifestações
Além de inspirar ideologicamente muitos daqueles que
saíram as ruas em diversas manifestações ao redor do mundo, V de Vingança foi a fonte de onde os
manifestantes tiraram a máscara que tanto se popularizou nesses movimentos.
Isso se deve à enorme popularização da história ocorrida após sua adaptação,
mesmo que não muito fiel, à obra original, para o cinema realizada em 2005.
A máscara que é usada por V na
história tem o intuito de proteger sua real identidade. Foi criada pelo desenhista e co-criador da
história, David Lloyd. Ela foi inspirada em Guy Fawkes, um britânico católico
extremista, herói militar e que foi morto condenado por terrorismo. Em 1605,
Fawkes em associação com outros católicos planejou a explosão do parlamento
inglês e o assassinato do Rei Jaime I com o intuito de restabelecer a monarquia
católica na Inglaterra.
Atualmente, a máscara do V também é
muito conhecida como principal símbolo do “Anonymous”,
grupo de pessoas surgido na internet, que luta contra a perda dos direitos de
liberdade de expressão e privacidade na mesma. Seu uso nas manifestações pode ser interpretado
como uma tentativa de exaltação da ideologia e não dos rostos por trás da
máscara. E é justificada pela identificação que os participantes acabam tendo
com os ideais do personagem.
Em
entrevista ao jornal britânico “The Guardian”, Alan Moore comentou sobre a
utilização da máscara em manifestações, segundo ele:
Ela transforma os protestos em performances. A
máscara é dramática; cria uma sensação de aventura. Manifestações, marchas, são
coisas que podem ser bem cansativas, exaustivas. Desanimadoras, até. Precisam
acontecer, mas isso não quer dizer que são divertidas - e deveriam ser. (...)
[Com as máscaras,] parece que
esse pessoal está se divertindo. E a mensagem que passam com isso é muito
forte.
Já em entrevista ao
portal Uol, Moore falou especificamente a respeito do caso das manifestações no
Brasil, e mandou uma mensagem aos manifestantes: "Desejo o melhor para os protestos no
Brasil. Acho que o que estão fazendo é maravilhoso e espero que isso progrida
para uma vitória.” Também em entrevista ao portal Uol, David Lloyd demonstrou
seu contentamento ao ver sua criação sendo usada pelos manifestantes:
Gosto de saber que a
máscara está sendo usada desta maneira: um símbolo de resistência. É para isso
que ela foi criada.[...] Ela também dá anonimato aos manifestantes, no sentido
que transforma todas as pessoas em uma mesma pessoa: a massa que está lá
protestando.
Considerações Finais
Quando Alan Moore e
David Lloyd criaram e desenvolveram a história V de Vingança não imaginavam
importância que essa história e seu protagonista teriam na sociedade atual. V
deixou de ser apenas um simples personagem, mas se tornou um exemplo, um ideal
de inconformismo contra um estado corrupto e disfuncional e acima de tudo um
símbolo de resistência.
Cada manifestante que
usa a máscara deixa de lado a sua identidade e o seu interesse pessoal para
reivindicar o direito de todos, pois embaixo da máscara abdicamos nossos egos e
assumimos nossa parte em algo muito maior, e é a partir desse momento que
estaremos prontos a lutar pelas mudanças tão necessárias a nossa sociedade.
“Pronto! Você pretendia
me matar? Não há carne ou sangue dentro deste manto pra morrerem. Há apenas uma
idéia. Idéias são à prova de balas. Adeus” (MOORE, Alan ; LLOYD, David. 1989)
REFERÊNCIAS
MOORE, Alan.
Moore. Meet the man behind the protest mask. Disponível
em:
.
Acesso em: 28 jun. 2014.
CRIADOR de "V de
Vingança", Alan Moore diz que "é maravilhoso o que está
acontecendo" no Brasil. Disponível em:
. Acesso em: 25 jun. 2014.
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