quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Onda

As contradições são nítidas e tangíveis
A esperança é ingênua e abstrata
A fuga é triste
A onda vem

A ressaca do mar
As ondas são bravas
Você a observa, sentada na praia
Uma ameaça concreta e líquida

A rebentação assusta e intimida
A areia está úmida com marcas de pés
O mar com sua água salgada
Cicatriza fétidas feridas

No seu ritmo peculiar
As ondas vão e vem
E nascemos e morremos
No nosso ritmo que não é o natural

OTÁVIO SCHOEPS

domingo, 12 de agosto de 2012

A Doutrina da Besta – Primeiro capítulo



O primeiro discurso 
 Seus passos ecoavam furiosamente pelo âmbito, perfuravam os ouvidos dos presentes, que se acanhavam e se auto-impediam de lançar o mínimo olhar se quer para a figura esguia que avançava em direção a uma varanda. Não poderia melhor descrevê-lo, ele se parecia com a dor, excruciante, ele já era a tortura em si, era terrível olhar muito tempo para ele. Mas quando queria ser, não havia humano mais dócil, se é que ele era um humano, contudo, cativava até os mais enregelados, até quem não queria ser cativado. O fato é, ele sabia seduzir os olhares mais críticos, controlar, manipular.
Seus cabelos negros passeavam com o vento, fora a única parte que todos puderam ver antes da besta transformar-se no anjo, e contemplar uma multidão. Da varanda se tinha acesso à paisagem pitoresca daquele verão, a calmaria da manhã trazia a paz, o sol banhava cada um que ali parava pra assistir. Nuvens tímidas formavam esculturas, o vento gélido ainda reinava por entre as quadras da cidade, ajudavam a deformar o céu, movendo-as constantemente e obrigando-as a dançar conforme a sua própria música, os uivos que batiam nas janelas do prédio onde os homens estavam, onde a figura esguia avançava.
– Não fora difícil atrair todo esse povo até aqui. – comentou um cara qualquer que estivera na sala, suas grandes mãos acenaram ao anjo, antes dele mostrar sua face impetuosa para toda aquela gente.
– Creio que não. É tão fácil distrair e manipular, são como bonecos, e é incrível, são todos iguais! – acrescentou o outro, delineando um sorriso cheio de malícia.
O anjo maligno entrou em ação, seus passos fortes foram cessados quando parou defronte da nação paulista, ouviu aplausos e algumas altas indagações, não estava num ponto muito alto, apenas no primeiro andar de um prédio histórico, não tornando difícil o contato que queria com o público. Saudou-os com um “bom dia”, sentiu-se rei, permitiu que seus lábios tenebrosos curvassem um sorriso amigável. Mas, quem era ele? Ninguém sabia. Só ele. Todavia, não era algo em que estava disposto a deixar explicito. Seu nome, seria mesmo a dor, mas ele próprio se batizara. Álvaro Bozais.
– Caro povo, confesso que deparar-me defronte a todos vocês não seja de meu agrado, mas, é preciso alertar-los de todos os riscos que corremos, juntos, toda a nação brasileira!
– Veja só, Gomes, observe... – cochichou o rapaz de grandes mãos para seu colega.
– Estou observando, Silva, deixe-me prestar atenção! – redargüiu o amigo em alto tom, chamando a atenção de toda a sala, até mesmo, do anjo-besta, que todos achavam ter o dom da eloqüência.
– Não podemos voltar para nossas casas, cruzar nossos braços e sentar em nossos sofás, sabendo que talvez em segundos, nossos corpos se estatelarão no concreto frio, sangue jorrará! Temos que agir, Brasil! Apenas observamos o mundo lá fora, sem saber que ele também nos observa, que ele calcula friamente a nossa derrota. Eles querem o que jaz em nossas terras, já não basta o quanto já foram exploradas outrora. Eu sei. Estivemos sempre ajudando outros países a exercerem seus papéis, pergunto-me se seremos sempre figurantes na história do mundo, pois, somos alvo fácil, o tiro certeiro destruirá toda uma nação! Fizeram-nos crer em suas crenças, desfrutar de sua cultura, comer seu pão e falar sua língua. Onde nós estamos nessa pirâmide mundial?
“Eu posso trazer-lhes a solução, meu povo, eu preciso do apoio de cada brasileiro, de cada rosto, cada coração, que se entreguem junto comigo, até o fim, que nenhuma morte será em vão, que cada alma será valorizada. Eu preciso do sorriso brilhando em nossos rostos. De uma união maior, do amor, acima de tudo, o amor por uma bandeira! Vamos tirar esse mundo azul, vermelho e branco, e transformá-lo em nosso verde, amarelo, anil! Mostrar nossas verdadeiras faces, livrar-nos do não reconhecimento, antes que sejamos mergulhados na penumbra. E se já estamos, tirar-nos-emos dela! Vamos proteger as almas brasileiras.“
– Agora, quero ver cada voz se levantar, pois todos nós sabemos essa canção...
O mundo vibrou diante dos olhos do anjo, que voltara a ser besta, ergueu suas mãos, deu inicio a um hino nacional ao fim daquele breve discurso. A banda tocava com fervor, mãos no peito, braços fortes, as vozes se uniram e formaram o timbre de uma nação crente. Os da sala, sorriram, entraram nessa dança amorosa entre o povo e a pátria amada. Comentaram com seus olhares espertos o que acabara de acontecer, mas aquela multidão não era a única a ser manipulada, estes também não conheciam a besta, apenas o anjo mostrava as cartas.
Ao fim do hino, eclodiu a esperança. Ninguém sabia o que o homem queria dizer com tudo aquilo, mas cada palavra fora capaz de trazer a ilusão de que haveriam melhoras dali por diante, e que eles deveriam lutar por elas, e crer em cada discurso. Não demoraria muito para que a besta desfrutasse do poder. Talvez, o Brasil fosse o lugar errado para uma revolução, muitos diriam. Mas, era mais que perfeito, alegaria ele no fim de seus segredos.
Os passos do homem voltaram a ecoar após a despedida, deixara peitos arfando, corações altamente lavados com o seu mais nobre discurso, a ambição resgatara cada um, os trouxeram para seu ninho, mas a tropa ainda não estava formada.
– Estou vendo que não deixaram a imprensa ter acesso ao prédio. –Gomes comentou ao seu amigo.
– Claro que não! Seria a ruína para nossos planos. Ta certo, deixar essa esperança, mas também um ponto de interrogação pairando por suas cabeças.
– E a nossa emissora aliada? Ah, como é ruim desconhecer os detalhes, Silva.
– Está transmitindo tudo ao vivo para todo o Brasil, mas não aqui, com o povo.
Gomes se calou por um tempo, talvez não fosse o único ali que desconhecesse cada minucioso detalhe daquele plano, mas sentira-se inferior até mesmo à formiga na cadeira, fitando, talvez, a besta, que não falava com ninguém naquele momento de questionamentos. Estava preocupado demais com sua própria mente. Mas, o jovem sentia-se tão assustado, como se o Álvaro fosse logo tirar uma enorme arma de dentro de seu blazer, e que ele seria o primeiro a levar uma bala no cérebro. Quis perguntar seu nome, servir um café, ser imensamente amigável e aí, não morrer assim, no meio da sala. Respirou fundo e virou seu rosto pálido para Silva, que exibia seus cabelos louros agitando com a brisa que vinha da janela, e olhos azuis penetrando em Álvaro Bozais. Não era o único. A figura alta, magra e negra chamava a atenção dos menos acanhados, que não hesitavam em encará-lo, como se perguntassem “E aí? O que vai ser?”, ele, por sua vez, lançava olhares de escárnio, passando-o para cada um ali presente, fixou em Gomes por mais tempo.
– Amanhã, Sphinx Hotel, três da madrugada. Quero que todos estejam lá, não são permitidas exceções. Tenham um bom dia.  – bradou Bozais para seus colegas e não esperou réplicas, quando se deram conta, a porta fora grotescamente fechada, e ele já saía pelos fundos com seu Camaro 78 preto.
“Três da madrugada?” Indagavam entre os outros, até que essa pergunta corresse por toda a sala antes de todos deixarem-na, indo talvez, para suas casas, com suas mesmas mulheres, mesmos filhos, mesmas vidas, e sabe se lá o que faria Álvaro, aonde iria com seu carro antigo de aparência perfeita, andando pelos cantos da cidade. Alguns diziam que ele correria por ela até resolver almoçar num restaurantezinho de estrada. Todos alegavam que ele ia completamente sozinho, não tinha esposa nem filhos, tampouco amigos que estivessem ao seu lado quando ele precisasse. Mas, ele não precisava. Outras pessoas diziam que ele ia em seu sofisticado apartamento chorar e beber uísque até não poder mais, e que aquela sua solidão o havia deixado assim tão frio e maléfico, que dera tempo para que ele bolasse o plano todo, que talvez, eles tivessem conhecimento naquela madrugada. Bom, ele poderia estar fazendo os dois naquela singela tarde.
Assim, todos os engomadinhos da sala foram saindo, aos poucos, deixando para trás a multidão que se desmanchava, como água que serpenteava pelas ruas. Seu dia aguardava memórias, pensamentos, uma matéria na TV. Todos foram embora incessantemente amando a pátria, isolados com suas próprias ideias, suas verdades. O mundo se desfazia de repente, para que montassem em suas cabeças uma realidade diferente, sonhos que eles deixavam amostra. Enquanto Bozais, indiferente, tecia as linhas da sua vida, e os outros tentavam decifrá-la. 

Gabriela Cazonatto Godinho