Stalingrado - 1943 |
Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.
A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.
Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.
Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.
Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!
A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.
Carlos Drummond de Andrade
Esse poema nos passa uma mensagem forte sobre os horrores da 2ª Guerra Mundial e sobretudo a relutância de Stalingrado, e sua vontade quase sobrenatural em defender os escombros que um dia chamaram de cidade. Este esforço conjunto por um ideal comum (Vencer as tropas alemãs) é um contraponto a apatia contemporânea, que apesar de camuflada impede-nos de tomar alguma atitude (não estou aqui defendendo luta arma no séc. XXI) que possa de fato fazer a diferença, esse espírito feroz de auto-defesa (mesmo que os habitantes de Stalingrado foram forçados a permanecer em sua cidade) perdeu-se em meio a nova ordem mundial. Uma ordem onde ter um ideal é perda de tempo, ter opinião oposta ao conformismo é sinônimo de radicalismo. A ordem muda, porém as bases permanecem, manipulação, repressão, exclusão e ódio não acabaram com a queda do nazismo, permaneceram e evoluíram ao ponto das pessoas não perceberem que ao calar-se concordam. È na imutabilidade sócio-cultural que a permanência dessa base desumana se concretiza.
“Para o triunfo do mal só é preciso que os bons homens não façam nada” Edmund Burke
Renan Bonassa
O que ser bom ?
ResponderExcluirÉ ser neutro ?
É ser conformado ?
É fazer vistas grossas ?
Sob qual signo vem a luta ?