domingo, 30 de setembro de 2012

O artista da capa azul



Debruçado no chão chorando sobre um caderno velho, um homem que trajava uma pesada capa azul protegendo-lhe do frio, se via sem o que fazer com as inúmeras folhas brancas que o constituíam. Como num pesadelo intenso, ele cai num mundo sem fundo, ele se afoga nas próprias dores. Faz muito frio lá fora, lá dentro, apenas na capa azul é que encontrava o verdadeiro fogo, nela, crepitavam as chamas de uma fogueira perpétua. Apesar de toda desgraça, ele ainda era um cara de sorte. Apesar do cômodo vazio num apartamento muito frio, de uma alimentação a base apenas de pão e água, seus lábios machucados com o inverno, apesar de tudo, ele ainda era um cara de sorte.
  Abandonou o caderno empoeirado, agora desenhava usando os dedos gordos e roliços no chão, os molhava na tinta amarela, coloria o seu redor com um sol muito forte, por fim, dava contraste com um laranja. Era um enorme sol num céu âmbar, e do lado de fora, no céu retangular da janela, fulgura outro no meio de nuvens muito sujas. Queria tanto que o seu é que fosse real! Que saltasse do piso subitamente e se plantasse além do vidro da janela, não haveria nuvem alguma. Sonhava como uma criança, sem vergonha de seus devaneios pueris, se deliciava com a ternura que era sonhar.
Talvez, como criara o sol mais brilhante de sua vida, como o fizera reinar no céu como se fosse real, pudesse trazer ainda mais para dentro do quarto sem cor. Molhou novamente os dedos, sujou-os de verde, e do chão transbordou a natureza divina do mundo, tudo em poucos segundos, como se ele fosse Deus, ordenando à terra que germinassem as plantas. A grama não podia ser mais verde, ainda misturada com o laranja e o amarelo do sol, e da sujeira ele trouxe flores e frutos, saborosas mangas, bananas, mamões. Os dedos mergulhados na tinta, a vida mergulhada na graça da imaginação, ah, como o mundo belamente se transformava! Por baixo da capa a fogueira brilhava contente, por baixo dos sonhos se estendia a falsa realidade, ele deixara de cair no pesadelo.
Derramou no chão tudo que podia, o quarto era pequeno, mas cabia a imensidão de seu mundo. Ainda restavam-lhe as paredes úmidas, chovera naquela noite, então do forro acabaram vazando lágrimas poluídas das nuvens, mesmo assim, se ainda continha tinta nos potes cinzentos, não havia mais nada para impedir o artista de expressar seus sonhos. Assim, do cimento nasceram estrelas, como se passasse além do sol e mergulhasse no espaço azul escuro, dali, brilhavam os corpos celestes com uma incrível felicidade. Seus dedos dançaram na primeira parede, debilmente ele correu as mãos por sua extremidade. Na outra, o branco da lua era enorme, parecia que poderia entrar em suas crateras, apenas com as pontas dos dedos ele criou os detalhes, minuciosos, trouxe tanta realidade que às vezes tudo parecia deixar de ser tão infantil.
O artista continua em seu rumo agitado, ávido em terminar ligeiro tudo que planejara em sua mente conturbada. Deixava de ser tão solitário para cumprir os deveres que ele mesmo impunha. As horas se passavam, mas furtivamente os sonhos caíam de seus dedos, brotavam em todos os lugares, as horas eram como segundos quando o mundo começava a ser criado. Agora, ele suava, mesmo com o clima invernal, ao andar para lá e para cá, exclamar muitas vezes seu encanto, agachar e voltar ereto para alcançar os pontos mais altos das paredes, ao fazer tudo e mais um pouco, exigia de seu corpo a energia que não tinha. O suor pingava até a capa azul, arrastando pelo chão ainda molhado com a tinta, apagando tudo que criara com magia, assim como os sapatos de couro o faziam, ele destruía o que ele mesmo havia feito. Só não podia ver.
Ao fim das horas, as paredes estavam completas, o universo virava vida, ele se tornara o astronauta azul que resgatara a cor em todos os mundos, só sobravam as manchas de tinta em seus potes e na camisa xadrez que vestia por baixo da capa. Sorriu, satisfeito e ofegante. Bateu as mãos nas laterais de sua calça jeans, também suja pelo entusiasmo do homem. Subitamente olhou para o chão. Tudo que criara abaixo dos pés estava arruinado, se via pisando novamente no nada, caindo sem sentido no meio de um pesadelo louco.
Sentou-se aonde havia frutas frescas, aonde havia grama, mas lá, tudo se unira numa enorme mancha castanha por cima do âmbar. Como se nada pudesse piorar, a chuva havia novamente recomeçado, batendo no forro com selvageria, a tempestade comum de fim de tarde. Oh não! As lágrimas novamente vazavam das extremidades do teto, eram lágrimas que se tingiam de azul escuro, da alvura da lua, da cor dos planetas misteriosos espalhados por todo o lugar, caíam ao chão junto do rapaz.
Ele voltara a ser o homem miserável de sempre, agora, nem as tintas possuía mais, apenas o caderno jogado no canto do cômodo, que novamente se cobriria de lágrimas provocadas pela solidão.

Gabriela Godinho

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