domingo, 16 de setembro de 2012

A Doutrina da Besta – Segundo capítulo


Um homem, uma besta, um salvador ou uma promessa?

 Seu olhar estudou a calçada antes de adentrar no carro, que parecia todo mergulhado em negrume, sombrio e que trazia frieza em cada lugar que percorria. Naquele momento, na verdade, não tinha lugar algum para ir, nem sabia como perder-se pelos labirintos de concreto que constituíam a cidade, nada mais tinha graça, nem um gesto, um sentimento, uma via, um lugar, as coisas perderam os sentimentos havia muito tempo, removendo, talvez perpetuamente, o encanto que as coisas simples da vida traziam. Isso estava claro em seus monstruosos olhos, que carregavam mais do que dores, ambições ou verdades, carregavam as memórias, que continuamente moldavam com precisão tudo que se dizia por Álvaro Bozais. Ainda sim, quem era ele, afinal? Um homem, uma besta, um salvador ou uma promessa? E quem saberia responder? “Ninguém sabe responder”, diria algum homem temeroso até mesmo para olhar a besta por alguns segundos, diria uma mãe depressiva e um pai ausente. “Ninguém”, uma namorada estranha, um amigo da onça.
Lentamente a vida já nem fazia sentido conforme só houvesse interrogações pairando pelo ar, andando com a fumaça, dançando um tango com a poluição. Certamente já não tinha mais nada para se fazer naquele momento a não ser observar essa dança. O sol alcançava o auge do meio-dia, as nuvens começavam a engordar e escurecer lentamente, tornando-se sujas de cinza, os raios de luz que escapavam por entre elas, com seu fulgor, banhavam as cabeças que passavam pelas ruas, voltando para suas casas justamente do jeito em que Bozais descrevia. Cruzando os braços e sentando em seus sofás confortáveis, crendo talvez, que seus corpos realmente poderiam se estatelar no concreto frio. E mesmo com o temor, com suas mentes de repente tomadas por diversos devaneios, não havia o que ser feito senão esperar o desconhecido. E que outro desconhecido resolva, mas não eles.
Contudo, esse desconhecido pretendia fazer o mesmo ao ligar seu carro e voltar para o moderno apartamento que ganhara do pai, próximo ao centro da cidade. Talvez ele preferisse agora tê-lo comprado com seu próprio dinheiro, seu pai lhe dava tudo que julgava preciso, isto é, móveis, roupas caras, celulares, computadores e o que mais ele apontava e dizia “eu quero”. Amor, sorrisos e atenção não contavam. Tinha tudo para se tornar mais um mesquinho filho de papai, mas talvez sua personalidade fora além do que os pais construíam. Tornara-se um homem diferente, a besta, que friamente julgava não precisar de todas aquelas besteiras, e besteiras incluíam qualquer membro da família, qualquer laço de amor ou amizade. A memória profanada com o tempo, mas ainda sim clara, lembrava-o de tudo que fora, tudo que deveria ser e o que deixar pra trás.
Para quem vira Bozais, era difícil imaginá-lo criança, ainda mais do jeito que ele fora.

Sabe se lá quantos anos atrás... 

Um homem esguio se joga na velha poltrona, cansado de mais um dia de trabalho, deixava que os mesmos devaneios se despertassem da imaginação e passassem a correr pela sua mente, no lugar dos ecos perturbadores das últimas oito horas. Assim, ele olha o céu do começo de noite, o fim de tarde já vira das janelas do trabalho, quando teve o ímpeto de distrair-se de sua tarefa por alguns segundos, ele pôde ver o céu ser engolido por um manto de negrume, e naquele momento na sala de casa, ele via que várias estrelas foram salpicadas pelo manto, tornando-o menos macabro. A lua, por sua vez, derretia sua luz pálida pelo mundo, caía atravessando a porta da varanda e banhava um pequeno menino sentado no chão atrás da poltrona, abraçando seus joelhos, a cabeça é baixa, mas os olhos se levantam para contemplar os cabelos desgrenhados e quase totalmente grisalhos do pai, ele vê aquela cena como se fosse belíssima, como se fosse a primeira vez em que ele o via ali, parado, resmungando ou então quieto demais com seus próprios pensamentos que ninguém podia entender. Contudo, o filho tentava. Naquela sua mente pequena e confusa, ele se punha a imaginar o que se passava pela cabeça do velho.
Logo, o homem tirava um maço de cigarros e um isqueiro escarlate do bolso da camisa de listras, o fogo que acendera iluminava os pequenos olhos negros do menino, tornando-os levemente rubros. O filho observava a fumaça saindo por trás da cabeça de seu pai, que desconhecia sua presença logo ali. Era uma cena comum de uma sexta à noite, quando todos estavam cansados do dia corriqueiro e procuravam um refúgio para que tudo que acontecera pela semana fosse apagado em alguns sagrados minutos, que às vezes se tornavam horas e essas horas chegavam até uma vaga madrugada. E o pequeno continuaria ali, firme, sem emitir nem sequer o som de seu bocejo, evitando tossir ou espirrar, embora estivesse ficando doente e começasse a ser inevitável. Os pés descalços tocavam o piso frio da casa, mas cobertos pelo luar, ele fingia que o aquecia como se fossem raios solares, evitava as vertigens do sono até a hora que pode. Queria muito poder entender o homem que já adormecia com o cigarro ainda na mão direita, caída pelo braço do sofá. Queria muito saber dos seus sonhos e entender seus segredos, acima de tudo, queria que ele fosse mais seu pai do que costumava ser.
Mas aos poucos, o corpinho frágil e magro começa a tombar para o lado, mole e cansado de lutar para postar-se na posição em que estava, pedia desculpas a si mesmo, ao papai, mas tinha que deixar pra outro dia entendê-lo. De repente, uma mão fina e delicada tocara-o no ombro, segurou-o com calma e o guiou até a cama. Deitou-se de má vontade e a mãe saiu do quarto, deixando apenas que um pequeno feixe de luz adentrasse pela porta, assim, ele não sentiria tanto medo da solidão. Não tinha mais sono, então, nada restava senão observar os fantasmas imaginários movendo as cortinas e uivando nas janelas, os monstros debaixo da cama chamando seu nome e os enormes cobertores azuis protegendo-o de qualquer perigo que impregnava em seu amplo quarto. Ali, a luz da lua era impedida pelas cortinas pesadas, mas tinha certeza que na sala, aquele homem que tanto apreciava, recebia a graça de ser coberto por ela.

Voltando a sabe se lá quantos anos depois...

Finalmente chegava no estacionamento do condomínio, ocupando uma das últimas vagas, já que era raro os moradores saírem em pleno domingo, seus carros caríssimos descansavam. Possuíam horários previsíveis, dias vagos, mas o que se escondia por trás de cada porta talvez não fosse lá tão vago, era inimaginável. Embora todos os funcionários soubessem exatamente quando a srta. Souza descia para o café ou ia as compras, quando o Sr. e a Sra. Silva iam para o trabalho, até mesmo quando Bozais saía para almoçar em algum restaurante. Desconheciam o que tanto faziam quando voltavam, o que tanto pensavam após dizer-lhes um surpreso “bom dia” de resposta, tipicamente ácido e sem importância, quase que automático. Só não precisavam estudá-los e arriscar um “tudo bem?”, era mais fácil fazer seu trabalho quietos. E assim os dias passavam, as semanas corriam e os domingos duravam, consumidos pelo cansaço dos moradores. 
No fim do estreito corredor, uma das branquíssimas portas dava acesso para o apartamento de Álvaro, o número 53 era bem visto, sendo de um dourado que reluzia com as luzes ardidas tomando conta do âmbito. Além de ser habitado por um futuro homem importante para a nação. Poucos podiam dizer que estiveram lá antes, ele raramente recebia visitas, como já era de se esperar, a solidão era a única que sempre estivera ali por vontade de Álvaro e sempre seria bem vinda em qualquer dia, qualquer hora. Conforme ele aprendia a conviver com ela, a engoli-la à força durante tantos anos, começava a querê-la como quer-se alguém que já se fora, como quer-se a mais linda mulher. Sedento, ele procurava as vias mais vazias, as esquinas que quase ninguém dobra e os lugares que apenas solitários freqüentam. E vivia completamente bem de sua maneira, e continuaria vivendo por algum tempo, curto, mas tranqüilo e satisfatório.
Assim que adentrou, pôde sentir-se aliviado ao encontrá-la em todo o lugar, reinando com o silêncio, a solidão era mais que sedutora, era a única maneira de fazê-lo contente com alguma coisa. O abraçava quando ele largava seu corpo grande e desajeitado pela poltrona, apoiava a cabeça numa almofada qualquer, sentindo-se talvez, melhor que qualquer pessoa no mundo. Deixava no chão liso de madeira, sua maleta jogada sem pensar, Bozais era mais desleixado do que aparentava ser, em seus ternos e blazers mais bonitos, de sapatos engraxados por uma nova maquininha que comprara, por trás do homem bem cuidado, havia um outro que não ligava em deixar o que fosse no chão recém-encerado pela empregada. Esta vinha duas vezes por semana expulsar a solidão, maior paixão de Álvaro, e era obrigada a tirar cada meia que estivesse em lugares inusitados. Mas, aliás, ele a pagava mais do que bem. Não fazia mais que a obrigação, pensava quando levantava friamente seu olhar de um livro qualquer, para observá-la resmungando típicos impropérios.
Conforme os segundos passavam, a velha paisagem da janela se movia, os passos confusos de Álvaro perambulavam durante algum tempo, no fim, ao lado de seus pés jaziam uma taça e uma garrafa de vinho, seu corpo mole novamente jogado na poltrona. Via com uma incrível calmaria a luz laranja do sol de fim de tarde se esvaindo do quadro do corredor, esperando a noite como quem espera o dia depois de não conseguir mais dormir. Quando se viu apoderado da escuridão, esperando a lua ganhar mais altitude ao céu, não hesitou em tirar um maço de cigarros do bolso e um isqueiro do outro. Encheu a taça com seu vinho até quase passar a borda, deixava o liquido descer demasiadamente em sua garganta para tragar o cigarro entre seus longos dedos.
No mais tardar, a lua começava a cobrir sua imagem, vinda com sua luz atravessando os vidros da grande janela, a fumaça saindo por trás da poltrona, e quem sabe, o fantasma de um pequeno magricela observava-o admirado, que surgira da penumbra e se acomodara aonde encontrava o fraco luar aquecendo seu corpo pueril. 

Gabriela Godinho

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