Debruçado no
chão chorando sobre um caderno velho, um homem que trajava uma pesada capa azul
protegendo-lhe do frio, se via sem o que fazer com as inúmeras folhas brancas
que o constituíam. Como num pesadelo intenso, ele cai num mundo sem fundo, ele
se afoga nas próprias dores. Faz muito frio lá fora, lá dentro, apenas na capa
azul é que encontrava o verdadeiro fogo, nela, crepitavam as chamas de uma
fogueira perpétua. Apesar de toda desgraça, ele ainda era um cara de sorte.
Apesar do cômodo vazio num apartamento muito frio, de uma alimentação a base
apenas de pão e água, seus lábios machucados com o inverno, apesar de tudo, ele
ainda era um cara de sorte.
Abandonou
o caderno empoeirado, agora desenhava usando os dedos gordos e roliços no chão,
os molhava na tinta amarela, coloria o seu redor com um sol muito forte, por
fim, dava contraste com um laranja. Era um enorme sol num céu âmbar, e do lado
de fora, no céu retangular da janela, fulgura outro no meio de nuvens muito
sujas. Queria tanto que o seu é que fosse real! Que saltasse do piso
subitamente e se plantasse além do vidro da janela, não haveria nuvem alguma. Sonhava
como uma criança, sem vergonha de seus devaneios pueris, se deliciava com a
ternura que era sonhar.
Talvez, como
criara o sol mais brilhante de sua vida, como o fizera reinar no céu como se
fosse real, pudesse trazer ainda mais para dentro do quarto sem cor. Molhou
novamente os dedos, sujou-os de verde, e do chão transbordou a natureza divina
do mundo, tudo em poucos segundos, como se ele fosse Deus, ordenando à terra
que germinassem as plantas. A grama não podia ser mais verde, ainda misturada
com o laranja e o amarelo do sol, e da sujeira ele trouxe flores e frutos,
saborosas mangas, bananas, mamões. Os dedos mergulhados na tinta, a vida
mergulhada na graça da imaginação, ah, como o mundo belamente se transformava!
Por baixo da capa a fogueira brilhava contente, por baixo dos sonhos se
estendia a falsa realidade, ele deixara de cair no pesadelo.
Derramou no
chão tudo que podia, o quarto era pequeno, mas cabia a imensidão de seu mundo.
Ainda restavam-lhe as paredes úmidas, chovera naquela noite, então do forro
acabaram vazando lágrimas poluídas das nuvens, mesmo assim, se ainda continha tinta
nos potes cinzentos, não havia mais nada para impedir o artista de expressar
seus sonhos. Assim, do cimento nasceram estrelas, como se passasse além do sol
e mergulhasse no espaço azul escuro, dali, brilhavam os corpos celestes com uma
incrível felicidade. Seus dedos dançaram na primeira parede, debilmente ele
correu as mãos por sua extremidade. Na outra, o branco da lua era enorme,
parecia que poderia entrar em suas crateras, apenas com as pontas dos dedos ele
criou os detalhes, minuciosos, trouxe tanta realidade que às vezes tudo parecia
deixar de ser tão infantil.
O artista
continua em seu rumo agitado, ávido em terminar ligeiro tudo que planejara em
sua mente conturbada. Deixava de ser tão solitário para cumprir os deveres que
ele mesmo impunha. As horas se passavam, mas furtivamente os sonhos caíam de
seus dedos, brotavam em todos os lugares, as horas eram como segundos quando o
mundo começava a ser criado. Agora, ele suava, mesmo com o clima invernal, ao
andar para lá e para cá, exclamar muitas vezes seu encanto, agachar e voltar
ereto para alcançar os pontos mais altos das paredes, ao fazer tudo e mais um
pouco, exigia de seu corpo a energia que não tinha. O suor pingava até a capa
azul, arrastando pelo chão ainda molhado com a tinta, apagando tudo que criara
com magia, assim como os sapatos de couro o faziam, ele destruía o que ele
mesmo havia feito. Só não podia ver.
Ao fim das
horas, as paredes estavam completas, o universo virava vida, ele se tornara o
astronauta azul que resgatara a cor em todos os mundos, só sobravam as manchas
de tinta em seus potes e na camisa xadrez que vestia por baixo da capa. Sorriu,
satisfeito e ofegante. Bateu as mãos nas laterais de sua calça jeans, também
suja pelo entusiasmo do homem. Subitamente olhou para o chão. Tudo que criara
abaixo dos pés estava arruinado, se via pisando novamente no nada, caindo sem
sentido no meio de um pesadelo louco.
Sentou-se
aonde havia frutas frescas, aonde havia grama, mas lá, tudo se unira numa
enorme mancha castanha por cima do âmbar. Como se nada pudesse piorar, a chuva
havia novamente recomeçado, batendo no forro com selvageria, a tempestade comum
de fim de tarde. Oh não! As lágrimas novamente vazavam das extremidades do
teto, eram lágrimas que se tingiam de azul escuro, da alvura da lua, da cor dos
planetas misteriosos espalhados por todo o lugar, caíam ao chão junto do rapaz.
Ele voltara a
ser o homem miserável de sempre, agora, nem as tintas possuía mais, apenas o
caderno jogado no canto do cômodo, que novamente se cobriria de lágrimas provocadas
pela solidão.
Gabriela Godinho
Muito Bom Gabriela. Você usa muito bem as palavras.
ResponderExcluirMarco Aurélio