Um homem, uma besta, um salvador ou uma promessa?
Seu olhar estudou a calçada antes de
adentrar no carro, que parecia todo mergulhado em negrume, sombrio e que trazia
frieza em cada lugar que percorria. Naquele momento, na verdade, não tinha
lugar algum para ir, nem sabia como perder-se pelos labirintos de concreto que
constituíam a cidade, nada mais tinha graça, nem um gesto, um sentimento, uma
via, um lugar, as coisas perderam os sentimentos havia muito tempo, removendo,
talvez perpetuamente, o encanto que as coisas simples da vida traziam. Isso
estava claro em seus monstruosos olhos, que carregavam mais do que dores,
ambições ou verdades, carregavam as memórias, que continuamente moldavam com
precisão tudo que se dizia por Álvaro Bozais. Ainda sim, quem era ele, afinal?
Um homem, uma besta, um salvador ou uma promessa? E quem saberia responder? “Ninguém
sabe responder”, diria algum homem temeroso até mesmo para olhar a besta por alguns
segundos, diria uma mãe depressiva e um pai ausente. “Ninguém”, uma namorada
estranha, um amigo da onça.
Lentamente a vida já nem fazia sentido
conforme só houvesse interrogações pairando pelo ar, andando com a fumaça,
dançando um tango com a poluição. Certamente já não tinha mais nada para se
fazer naquele momento a não ser observar essa dança. O sol alcançava o auge do
meio-dia, as nuvens começavam a engordar e escurecer lentamente, tornando-se
sujas de cinza, os raios de luz que escapavam por entre elas, com seu fulgor,
banhavam as cabeças que passavam pelas ruas, voltando para suas casas
justamente do jeito em que
Bozais descrevia. Cruzando os braços e sentando em seus sofás
confortáveis, crendo talvez, que seus corpos realmente poderiam se estatelar no
concreto frio. E mesmo com o temor, com suas mentes de repente tomadas por
diversos devaneios, não havia o que ser feito senão esperar o desconhecido. E
que outro desconhecido resolva, mas não eles.
Contudo, esse desconhecido pretendia fazer o
mesmo ao ligar seu carro e voltar para o moderno apartamento que ganhara do pai,
próximo ao centro da cidade. Talvez ele preferisse agora tê-lo comprado com seu
próprio dinheiro, seu pai lhe dava tudo que julgava preciso, isto é, móveis,
roupas caras, celulares, computadores e o que mais ele apontava e dizia “eu
quero”. Amor, sorrisos e atenção não contavam. Tinha tudo para se tornar mais
um mesquinho filho de papai, mas talvez sua personalidade fora além do que os
pais construíam. Tornara-se um homem diferente, a besta, que friamente julgava
não precisar de todas aquelas besteiras, e besteiras incluíam qualquer membro
da família, qualquer laço de amor ou amizade. A memória profanada com o tempo,
mas ainda sim clara, lembrava-o de tudo que fora, tudo que deveria ser e o que
deixar pra trás.
Para quem vira Bozais, era difícil imaginá-lo
criança, ainda mais do jeito que ele fora.
Sabe
se lá quantos anos atrás...
Um homem esguio se joga na velha poltrona,
cansado de mais um dia de trabalho, deixava que os mesmos devaneios se
despertassem da imaginação e passassem a correr pela sua mente, no lugar dos
ecos perturbadores das últimas oito horas. Assim, ele olha o céu do começo de
noite, o fim de tarde já vira das janelas do trabalho, quando teve o ímpeto de
distrair-se de sua tarefa por alguns segundos, ele pôde ver o céu ser engolido
por um manto de negrume, e naquele momento na sala de casa, ele via que várias
estrelas foram salpicadas pelo manto, tornando-o menos macabro. A lua, por sua
vez, derretia sua luz pálida pelo mundo, caía atravessando a porta da varanda e
banhava um pequeno menino sentado no chão atrás da poltrona, abraçando seus
joelhos, a cabeça é baixa, mas os olhos se levantam para contemplar os cabelos
desgrenhados e quase totalmente grisalhos do pai, ele vê aquela cena como se
fosse belíssima, como se fosse a primeira vez em que ele o via ali, parado,
resmungando ou então quieto demais com seus próprios pensamentos que ninguém
podia entender. Contudo, o filho tentava. Naquela sua mente pequena e confusa,
ele se punha a imaginar o que se passava pela cabeça do velho.
Logo, o homem tirava um maço de cigarros e
um isqueiro escarlate do bolso da camisa de listras, o fogo que acendera
iluminava os pequenos olhos negros do menino, tornando-os levemente rubros. O
filho observava a fumaça saindo por trás da cabeça de seu pai, que desconhecia
sua presença logo ali. Era uma cena comum de uma sexta à noite, quando todos
estavam cansados do dia corriqueiro e procuravam um refúgio para que tudo que
acontecera pela semana fosse apagado em alguns sagrados minutos, que às vezes
se tornavam horas e essas horas chegavam até uma vaga madrugada. E o pequeno
continuaria ali, firme, sem emitir nem sequer o som de seu bocejo, evitando
tossir ou espirrar, embora estivesse ficando doente e começasse a ser
inevitável. Os pés descalços tocavam o piso frio da casa, mas cobertos pelo
luar, ele fingia que o aquecia como se fossem raios solares, evitava as
vertigens do sono até a hora que pode. Queria muito poder entender o homem que
já adormecia com o cigarro ainda na mão direita, caída pelo braço do sofá.
Queria muito saber dos seus sonhos e entender seus segredos, acima de tudo,
queria que ele fosse mais seu pai do que costumava ser.
Mas aos poucos, o corpinho frágil e magro
começa a tombar para o lado, mole e cansado de lutar para postar-se na posição em
que estava, pedia desculpas a si mesmo, ao papai, mas tinha que deixar pra
outro dia entendê-lo. De repente, uma mão fina e delicada tocara-o no ombro,
segurou-o com calma e o guiou até a cama. Deitou-se de má vontade e a mãe saiu
do quarto, deixando apenas que um pequeno feixe de luz adentrasse pela porta,
assim, ele não sentiria tanto medo da solidão. Não tinha mais sono, então, nada
restava senão observar os fantasmas imaginários movendo as cortinas e uivando
nas janelas, os monstros debaixo da cama chamando seu nome e os enormes
cobertores azuis protegendo-o de qualquer perigo que impregnava em seu amplo
quarto. Ali, a luz da lua era impedida pelas cortinas pesadas, mas tinha
certeza que na sala, aquele homem que tanto apreciava, recebia a graça de ser
coberto por ela.
Voltando
a sabe se lá quantos anos depois...
Finalmente chegava no estacionamento do
condomínio, ocupando uma das últimas vagas, já que era raro os moradores saírem
em pleno domingo, seus carros caríssimos descansavam. Possuíam horários previsíveis,
dias vagos, mas o que se escondia por trás de cada porta talvez não fosse lá
tão vago, era inimaginável. Embora todos os funcionários soubessem exatamente
quando a srta. Souza descia para o café ou ia as compras, quando o Sr. e a Sra.
Silva iam para o trabalho, até mesmo quando Bozais saía para almoçar em algum
restaurante. Desconheciam o que tanto faziam quando voltavam, o que tanto
pensavam após dizer-lhes um surpreso “bom dia” de resposta, tipicamente ácido e
sem importância, quase que automático. Só não precisavam estudá-los e arriscar
um “tudo bem?”, era mais fácil fazer seu trabalho quietos. E assim os dias
passavam, as semanas corriam e os domingos duravam, consumidos pelo cansaço dos
moradores.
No fim do estreito corredor, uma das
branquíssimas portas dava acesso para o apartamento de Álvaro, o número 53 era
bem visto, sendo de um dourado que reluzia com as luzes ardidas tomando conta
do âmbito. Além de ser habitado por um futuro homem importante para a nação.
Poucos podiam dizer que estiveram lá antes, ele raramente recebia visitas, como
já era de se esperar, a solidão era a única que sempre estivera ali por vontade
de Álvaro e sempre seria bem vinda em qualquer dia, qualquer hora. Conforme ele
aprendia a conviver com ela, a engoli-la à força durante tantos anos, começava
a querê-la como quer-se alguém que já se fora, como quer-se a mais linda
mulher. Sedento, ele procurava as vias mais vazias, as esquinas que quase
ninguém dobra e os lugares que apenas solitários freqüentam. E vivia
completamente bem de sua maneira, e continuaria vivendo por algum tempo, curto,
mas tranqüilo e satisfatório.
Assim que adentrou, pôde sentir-se aliviado
ao encontrá-la em todo o lugar, reinando com o silêncio, a solidão era mais que
sedutora, era a única maneira de fazê-lo contente com alguma coisa. O abraçava
quando ele largava seu corpo grande e desajeitado pela poltrona, apoiava a
cabeça numa almofada qualquer, sentindo-se talvez, melhor que qualquer pessoa
no mundo. Deixava no chão liso de madeira, sua maleta jogada sem pensar, Bozais
era mais desleixado do que aparentava ser, em seus ternos e blazers mais
bonitos, de sapatos engraxados por uma nova maquininha que comprara, por trás
do homem bem cuidado, havia um outro que não ligava em deixar o que fosse no
chão recém-encerado pela empregada. Esta vinha duas vezes por semana expulsar a
solidão, maior paixão de Álvaro, e era obrigada a tirar cada meia que estivesse
em lugares inusitados. Mas, aliás, ele a pagava mais do que bem. Não fazia mais
que a obrigação, pensava quando levantava friamente seu olhar de um livro
qualquer, para observá-la resmungando típicos impropérios.
Conforme os segundos passavam, a velha
paisagem da janela se movia, os passos confusos de Álvaro perambulavam durante
algum tempo, no fim, ao lado de seus pés jaziam uma taça e uma garrafa de
vinho, seu corpo mole novamente jogado na poltrona. Via com uma incrível calmaria a
luz laranja do sol de fim de tarde se esvaindo do quadro do corredor, esperando
a noite como quem espera o dia depois de não conseguir mais dormir. Quando se
viu apoderado da escuridão, esperando a lua ganhar mais altitude ao céu, não
hesitou em tirar um maço de cigarros do bolso e um isqueiro do outro. Encheu a
taça com seu vinho até quase passar a borda, deixava o liquido descer
demasiadamente em sua garganta para tragar o cigarro entre seus
longos dedos.
No mais tardar, a lua começava a cobrir sua
imagem, vinda com sua luz atravessando os vidros da grande janela, a fumaça
saindo por trás da poltrona, e quem sabe, o fantasma de um pequeno magricela
observava-o admirado, que surgira da penumbra e se acomodara aonde encontrava o
fraco luar aquecendo seu corpo pueril.
Gabriela Godinho